Poesias


Mulher trabalhadora (1978) 
Ligia Deslandes


Comungo a vida.
Na sociedade dos favorecidos.
Busco...
Refaço-me...
Participo do conflito dos assediados.
Reflito...
Sou bandida?
Conduzo-me...
Interrogo-me...
Quem sou eu, afinal?

O corpo responde.
A alma confirma.
Sou um resto de caminho.
Sou incoerência aflita.
Sou página virada.
Sou rebeldia quebrada.
Sou um grito no escuro.
Mas sou o futuro que há de vir.

Não tenho fé.
Preciso crer.
Não tenho forças
Tenho a luta.
Sou um teto de incertezas.
Faço proezas.
Sou ser humano.
Sou trabalhadora.
Sou mulher.


Morto Progresso  (1976)
Ligia Deslandes

Uma montoeira de árvores cinzentas.
Inertes...
Sem vida...
Fechavam o caminho da prosperidade.
Árvores ocas, feitas de cal e cimento,
Alimentando-se de fumaça.

Um amontoado de flores incertas.
Despetaladas...
Sem cor...
Atravancavam o tráfego das máquinas.
Flores andantes, feitas de cálculo e análise,
passando fome de morte.

Uma chuva passageira de sangue.
Trazendo frutos enigmáticos...
Frutos feitos de terra suorenta,
Molhada com lágrimas.
È o progresso da humanidade!


Estatutos do Homem 
Thiago de Melo
 
Art.1. Fica decretado que agora vale a verdade, 
que agora vale a vida
e que de mãos dadas
trabalharemos todos pela vida verdadeira.

Art.2. Fica decretado que todos os dias da semana, 
inclusive as terças feiras mais cinzentas,
têm direito a converter-se em manhãs de Domingo.

Art.3 . Fica decretado que, a partir deste instante, 
haverá girassóis em todas as janelas,
que os girassóis terão direito
a abrir-se dentro da sombra;
e que as janelas devem permanecer, o dia inteiro,
abertas para o verde onde cresce a esperança.

Art.4. Fica decretado que o homem 
não precisará nunca mais
duvidar do homem.
Que o homem confiará no homem
como a palmeira confia no vento,
como o vento confia no ar,
como o ar confia no campo azul do céu.

Par. único: O homem confiará no homem 
como um menino confia em outro menino.

Art.5. Fica decretado que os homens 
estão livres do jugo da mentira.
Nunca mais será preciso usar
a couraça do silêncio
nem a armadura das palavras.
O homem se sentará à mesa
com seu olhar limpo
porque a verdade passará a ser servida
antes da sobremesa.

Art.6. Fica estabelecida, durante dez séculos, 
a prática sonhada pelo profeta Isaías,
e o lobo e o cordeiro pastarão juntos
e a comida de ambos terá o mesmo gosto da aurora.

Art.7. Por decreto irrevogável fica estabelecido 
o reinado permanente da justiça e da claridade,
e a alegria será uma bandeira generosa
para sempre desfraldada na alma do povo.

Art.8. Fica decretado que a maior dor 
sempre foi e será sempre
não poder dar-se amor a quem se ama
e saber que é a água
que da a planta o milagre da flor.

Art.9. Fica permitido que o pão de cada dia 
tenha no homem o sinal de seu suor.
Mas que sobretudo tenha sempre
o quente sabor de ternura.

Art.10. Fica permitido a qualquer pessoa, 
a qualquer hora da vida
o uso do traje branco.

Art.11. Fica decretado, por definição, 
que o homem é um animal que ama
e que por isso é belo,
muito mais belo que a estrela da manhã.

Art.12. Decreta-se que nada será obrigado nem proibido. 
Tudo será permitido,
inclusive brincar com os rinocerontes
e caminhar pelas tardes
com uma imensa begônia na lapela.

Par. único: Só uma coisa fica proibida: 
amar sem amor.

Art.13. Fica decretado que o dinheiro 
não poderá nunca mais comprar
o sol das manhãs vindouras.
Expulso do grande baú do medo,
o dinheiro se transformará
em uma espada fraternal
para defender o direito de cantar
e a festa do dia que chegou.

Art. Final: Fica proibido o uso da palavra liberdade, 
a qual será suprimida dos dicionários
e do pântano do engano das bocas.
A partir deste instante
a liberdade será algo vivo e transparente
como um fogo ou um rio,
e a sua morada será sempre
o coração do homem.





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